A escuridão agora é sua inimiga. Não são monstros, não são zumbis, nem tampouco vampiros estereotipados. É a própria escuridão, destilada, deslizando entre rochas e árvores putrefatas em uma tentativa funesta de agarrar o seu tornozelo! Bem, não propriamente o seu tornozelo, é claro, mas o de Alan Wake, um escritor “Bestseller” que subitamente se vê aprisionado dentro da sua própria imaginação doentia.
Algo acima lembra remotamente o estilo singular da narrativa que conduzia os leitores através da inflamada literatura pop de horror dos anos 80? Sim. E é exatamente esse clima, tão estereotipado quando cativante que aguarda quem resolver colocar os pés da pitoresca Bright Falls, um lugar onde o mal é quase tangível, as imaginações tomam forma... e “o café é ótimo”.
Após mais de quatro anos engavetado, houve muita gente que, com certa razão, já ensacava Alan Wake juntamente com outros “vaporware” notáveis, tais como Duke Nukem Forever. Afinal, cá entre nós, o anúncio oficial do título da Remedy dividiu o palco da edição de 2005 da E3 (Electronic Entertainment Expo) com anúncios como Game Boy Micro e a revelação do novo console da Microsoft: o Xbox 360.
Isso assomado ainda às constantes evasivas da desenvolvedora em relação a uma data de lançamento — coisas do tipo “quando estiver pronto” — fomentou com o tempo a nítida imagem de algo que provavelmente não veria a luz do dia. Não obstante, finalmente Alan Wake foi lançado, e o produto final realmente não decepciona.
Mas, contrariando a expectativa de muita gente, não se trata de “mais um survival horror”. Não que a Remedy não tenha lançado mão de diversos artifícios que fazem um bom jogo do gênero, tais como a atmosfera opressiva e o protagonista com capacidades físicas questionáveis. Só que os elementos de ação aqui são demasiadamente evidentes para que se possa traçar um paralelo direto com títulos como Silent Hill e Resident Evil.
De fato, embora a história e mesmo os cenários consigam manter constante o clima de tensão, existe em Alan Wake certo dinamismo que lembra fortemente Max Payne — não por acaso, é claro —, embora as capacidades literárias de Sam Lake (Remedy) certamente tenham passado por um “upgrade” desde que o escritor traçou as desventuras do policial. Mas não fica por aí, é claro.
Stephen King encontra os video games
Um dos primeiro pontos positivos a saltarem à vista em Alan Wake vem da narrativa icônica do protagonista. Talvez não fosse exagerado chamar o título de “Stephen King jogável”. Senão, faça a sua própria checagem: Cidade fictícia no interior dos EUA? Checado. Personagens estereotipados e com encaixe perfeito na trama? Checado. Narrativa quase que exageradamente rebuscada, mesmo para descrever os acontecimentos mais pedestres? Checado.
Tudo bem, eventualmente, literatura de suspense/horror pop americana não faz muito o seu estilo. Mas a ideia não parece ser exatamente essa aqui. Trata-se mais de uma ode da Remedy, uma homenagem a um estilo de contar histórias que certamente ocupa um lugar considerável no imaginário popular.
E isso se estende para a trama principal do jogo. Aqui, você é Alan Wake, um escritor “bestseller” que passa atualmente por um bloqueio criativo. A fim de ajudá-lo, sua esposa, Alice, o leva até uma cidadezinha pitoresca, para relaxar os miolos e tentar criar algo vendável novamente.
Nesse ínterim, aparecem uma garçonete fanática por seus livros, seu editor caricato (o impagável Barry) cobra sua localização, e uma mulher no mínimo suspeita aluga uma choupana em uma ilha na forma de uma pata de pássaro — de fato, o local se chama “Bird’s Leg”.
Entretanto, após algum tempo gasto na placidez sonolenta da ilha, Alice acaba despencando para dentro da escuridão do lago. Você tentará ajudá-la, saltando no lago... unicamente para encontrar a si mesmo, sozinho, em seu carro acidentado. Não faz sentido? Basta lembrar que uma das primeira frases ditas no jogo remete à máxima de Stephen King sobre o caráter ilógico e a ausência de maiores explicações que deve formar o corpo de um romance de horror. Então tá.
Luz e sombra
Mas existe ainda a alternância entre a tranquilidade idílica dos dias e o ar sombrio e perigos das noites em Bright Falls, assim como a oportuna nictofobia (medo do escuro, puro e simples) da sua esposa, Alice. Afinal, toda a excelente trama de Alan Wake pode ser reduzida à clássica batalha entre luz e trevas.
Melhor confiar na luz do que em balas
Caso você ainda tenha alguma dúvida em relação à natureza do seu inimigo principal aqui, basta dar uma conferida na jogabilidade. De fato, as suas armas mais “pesadas” aqui são, invariavelmente, fontes de luz. Sim, existe também um revólver, duas escopetas e mesmo um rifle de caça. Mas, sem empunhar a sua lanterna, de nada adianta alvejar tudo o que se mexer em Bright Falls.
No que diz respeito ao estilo dos ataques, trata-se de algo bastante semelhante à fórmula que a Remedy utilizou em Max Payne: uma mecânica central que se repete sempre, acrescida dos ataques propriamente ditos. A diferença é que em Max Payne você tinha o inesquecível “bullet time”, e aqui existe o facho da lanterna de Alan Wake.
A ideia é bastante simples: qualquer coisa no universo do jogo pode ser ocupada sem prévio aviso pela escuridão que, a cada episódio, toma mais força. Isso pode ser tanto uma colheitadeira, quando um pedaço de cano de cobre e, é claro, seres humanos.
Bem, para derrotar qualquer inimigo em Alan Wake, será necessário inicialmente extirpar a escuridão que serve como um escudo. Embora apenas isso baste para objetos inanimados, seres humanos (ou o que sobrou deles) precisam ainda de alguns disparos para que se convençam a voltar para o outro mundo. Enfim, embora a mecânica em si seja um tanto repetitiva, a tensão causada pela necessidade da lanterna é bem capaz de manter a adrenalina em alta.
No mais, quando a coisa estiver mesmo feia, é sempre bom ter a mão alguns sinalizadores (flares) à mão. Se em Tomb Raider eles apenas iluminavam, aqui vão manter as criaturas malignas afastadas, dando algum tempo para que você possa respirar. E existe ainda o seu messias particular dentro do jogo: uma pistola sinalizadora que vaporiza instantaneamente qualquer presença maligna em um raio de vários metros.
Ah, os detalhes!
Tudo bem, Alan Wake passa longe de ser um título de mundo aberto, e a pretensão nem passa perto disso. De fato, a linearidade aqui é constante, o que ajuda a dar a impressão de uma "história". Mas existe toda uma gama de detalhes que ajudam a reforçar o clima apavorante da trama.
A qualquer momento, você pode encontrar um rádio e ouvir do único radialista local as últimas notícias sobre a cada vez mais decadente Bright Falls. Em outro momento, um tanto mais hilário, um aparelho de televisão abandonado em uma choupana qualquer no meio da floresta traz um novo episódio de uma série intitulada “Night Springs” — paródia clara e bem-vinda do clássico “Twilight Zone”, com temáticas que vão do hilário ao bizarro.
Um bom motivo para coletar itens
Embora Alan Wake não escape da velha fórmula “colete 100 qualquer-coisa” — aqui são garrafas térmicas —, existe um item coletável que realmente vale a pena. Trata-se das páginas de um romance que o protagonista não lembra de haver escrito, e que, por um motivo qualquer, dita absolutamente todos os acontecimentos em Bright Falls
Só que o mais interessante é que essas páginas não estão sempre situadas no mesmo tempo-espaço, mas podem tanto entrar em pormenores de acontecimentos anteriores no jogo, como ainda predizer algo. Mas não, não se trata de um “spoiler”. Afinal, o fato de você saber que em algum momento haverá um sujeito com uma motosserra, isso não equivale a dizer quando exatamente isso deve ocorrer, certo?
Fato é que as páginas perdidas do livro misterioso de Alan Wake são um daqueles “detalhes” mencionados anteriormente que ajudam a compor o clima tenso do jogo — além de um bom motivo para você se embrenhar um pouco mais nas matas (e são muitas!).
Como criar uma atmosfera de horror/suspense convincente?
Mas não é apenas a trama de Alan Wake que se beneficia de um enorme número de detalhes. Os ambientes também contam com o mesmo preciosismo. Embora Alan Wake possua sua dose de deslizes gráficos — que se tornam ainda mais evidentes com a luz do dia —, o tratamento especial dado aos detalhes que formam o mundo de jogo consegue segurar as pontas, mantendo críveis tanto a trama quando a ambientação.
Durante os dias, o contraponto é criado com as belas paisagens de Bright Falls. A mecânica “Focus” se encarregará de posicionar a câmera sobre os pontos mais pitorescos da cidade, e uma breve história sobre o local é contada por Alan.
Em outras palavras, Alan Wake não serve de bandeja os clichês que normalmente se encontram em um “survival horror”. Em vez disso, a Remedy criou um estilo heterogêneo com ação, drama, mistério e uma boa dose de “pancadaria” sobrenatural. Durante boas 14 horas de jogo, assim como tudo em “Caldron Lake”, Alan Wake parece também criar vida própria. Portanto, seja bem-vindo à Bright Falls
Nenhum comentário:
Postar um comentário